A 10ª Câmara do TRT-15, em decisão unânime, deu provimento ao agravo de petição interposto pela executada, uma pessoa com síndrome de Down, e reconheceu a impenhorabilidade dos recursos depositados em sua conta bancária, oriundos do pagamento mensal de benefício assistencial previdenciário (BPC-LOAS). O colegiado determinou também a imediata liberação dos R$ 25 mil penhorados em nome da executada.
De acordo com os autos, a executada, diagnosticada com síndrome de Down, é representada por sua mãe e curadora, e recebe benefício previdenciário espécie 87 – Amparo Assistencial ao deficiente, decorrente da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), no valor de R$ 1.045,00 por mês. A penhora, autorizada pelo Juízo da Vara do Trabalho de Santa Bárbara D’Oeste, foi feita diretamente em sua conta bancária no valor de R$ 25 mil, sendo que o saldo da conta na ocasião do bloqueio era de R$ 28.131,94.
Em seus embargos à decisão de primeiro grau, a executada alegou ser “indevida a penhora dos recursos disponíveis em sua conta bancária, por se tratar de verba salarial, pois seriam provenientes do recebimento de benefício previdenciário pago pelo INSS à pessoa com deficiência, diante de sua condição especial (síndrome de Down)” e que “sua dignidade restou violada com a decisão de bloqueio de numerário, com riscos à sua sobrevivência, porque possui parcos recursos financeiros”. O Juízo de primeiro grau entendeu, porém, que o crédito de R$ 3.131,94 que permaneceu na conta garantiria “o mínimo necessário para a subsistência da embargante”.
O Ministério Público, em seu parecer, relatou que o caso se trata de ação trabalhista movida por um trabalhador contra uma microempresa, postulando verbas rescisórias, mas que com o falecimento do proprietário da empresa (individual), que era solteiro e deixou quatro filhos, o espólio foi representado por um dos filhos, que firmou acordo para pagamento do valor de R$ 25 mil, até o dia 20/5/2019, para quitação geral quanto ao objeto do processo e ao extinto contrato de trabalho”. No entanto, o acordo não foi cumprido. Assim, iniciaram-se as tentativas de bloqueio judicial, que não foram bem-sucedidas em sua totalidade, mesmo com a tentativa de localização de outros bens penhoráveis em nome do “de cujus”. Com a informação do credor de que o empresário falecido havia deixado imóveis aos filhos, foi encontrado um terreno, e por isso os quatro herdeiros foram chamados a responder, “cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube (art. 1.997 do Código Civil)”, mas estes não se manifestaram. Foi determinada então a tentativa de bloqueio dos valores, quando um dos herdeiros teve R$ 25 mil de sua conta bloqueados, enquanto na conta dos demais foram encontrados R$ 43,07, R$ 307,27 e R$ 1.108,73, respectivamente.
Para o relator do acórdão, o desembargador Edison dos Santos Pelegrini, “a questão central a ser enfrentada gira em torno da legitimidade (ou não) da penhora de valores oriundos de benefício assistencial pago pelo Órgão Previdenciário à pessoa com deficiência (síndrome de Down, no caso)”. Mais ainda, a tentativa de satisfazer o crédito trabalhista ultrapassando o patrimônio do devedor (“de cujus”) e adentrando no patrimônio dos filhos (herdeiros), com base na previsão contida no art. 1.997 do Código Civil, segundo a qual “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube”.
Nesse sentido, o colegiado ressaltou que “não há nos autos elementos seguros de que o valor bloqueado da conta da agravante seria correspondente ao quinhão hereditário que lhe coube com a morte do pai” e, considerando “a imprecisão do quinhão correspondente a cada um dos herdeiros, bem como a ausência de notícias quanto à existência de formal de partilha, não parece razoável a opção que, de imediato, penhorou valores constantes das contas bancárias dos herdeiros, que sequer fizeram parte do polo passivo da ação, sem, antes, tomar maior conhecimento da sucessão hereditária, sob pena de lesão a direitos de terceiros de boa-fé”.
Para o colegiado, a ausência de cautela ficou evidente, “na medida em que sequer se procurou avaliar o bem recebido em herança pelos executados, devendo-se chamar a atenção para o fato de que a própria exequente pretendeu a referida providência”. Também não há notícias nos autos de que o bem em questão tenha sido vendido, “razão pela qual se indaga por que motivo não se optou pela penhora do imóvel, com possibilidade de levá-lo à hasta pública”, questionou.
O acórdão não nega a satisfação do crédito trabalhista, contudo, afirmou “não é possível perder de vista que a execução não pode impor à parte executada ônus maior que o previsto no regramento jurídico, sob pena de subversão da lógica processual e, mesmo com a boa intenção de atender à legítima pretensão do trabalhador-credor, de lesionar direitos de terceiros, que, no caso, são herdeiros do ‘de cujus’”, ressaltou.
Somente essas considerações, segundo o relator, já seriam suficientes para alterar os rumos do iter processual da execução, mesmo assim, o acórdão continuou, e quanto à penhora, ponto central do agravo, afirmou que “não é crível imaginar (sendo até desumano) que o recurso remanescente na conta da agravante, consubstanciado na quantia de R$ 3.131,94 seria suficiente para garantir a sua subsistência, conforme constou da decisão agravada”.
O colegiado ressaltou que a agravante, por ser pessoa com deficiência, com síndrome de Down, “demanda maiores cuidados e gastos para a manutenção de uma vida com dignidade, o que, invariavelmente, implica gastos mais elevados nos cuidados com sua saúde, educação, lazer, dentre outros”. Afora os gastos médicos e com fisioterapia, a pessoa com síndrome de Down “também demanda especial atenção no aspecto educacional, além de cuidados específicos, muitos dos quais dispendiosos, notadamente porque as políticas públicas dirigidas a essa parcela populacional, conforme é cediço, ainda são consideravelmente insuficientes em nosso país”, tudo isso “sem falar na maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho e de manutenção da própria renda”, salientou o colegiado.
O acórdão destacou também a dificuldade de se determinar com exatidão o conteúdo do “mínimo existencial”, sobretudo porque ele pode variar de acordo com as circunstâncias concretas. Nesse sentido, afirmou que esse conteúdo, porém, está intimamente vinculado à noção de “dignidade da pessoa humana”, e que no caso dos autos, impõe-se “um olhar mais abrangente em relação à própria ideia de ‘mínimo existencial’, devendo-se reconhecer que a sua materialização, no caso de pessoa com síndrome de Down, demanda maior esforço e maiores recursos financeiros”, segundo os fundamentos da Constituição Federal, que outorgou tratamento diferenciado à pessoa portadora de deficiência, porque reconhecida sua condição especial, justificada à luz do princípio da isonomia constitucional (art. 7º, XXXI, art. 24 e art. 203), bem como na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, e que confere maior proteção às pessoas com deficiência.
A decisão colegiada concluiu, assim, que ainda que fosse considerada a existência de possível colisão entre o direito social do trabalhador-credor, de um lado, e os direitos da pessoa com deficiência, de outro, ambos de natureza constitucional, não se pode perder de vista que a pessoa com deficiência “encontra-se em situação de maior vulnerabilidade, o que demanda, no presente caso concreto, à luz da razoabilidade e proporcionalidade, conferir prevalência aos direitos da pessoa com deficiência”. (Processo 0011465-70.2018.5.15.0086 – AP)
Fonte: Tribunal Regional do Trabalho 15ª Região Campinas, 25.08.2021
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